Ainda sobre a “Lei Seca”

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Dando continuidade à discussão iniciada aqui no BREJAS pelo nobre Confrade Guilherme Scalzilli neste post, e atendendo às perguntas de vários leitores que nos questionaram sobre aspectos jurídicos da nova “Lei Seca”, trazemos abaixo um brilhante artigo de autoria do Prof. Rizzatto Nunes, que é mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP, além de Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e autor de diversos livros.

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Dou hoje minha opinião, que será estritamente jurídica sobre a atual lei seca que está dando o que falar. Deixo claro desde logo que, sinto-me bastante à vontade para tratar do assunto do modo como farei, porque na minha coluna de 04 de fevereiro deste ano (publicada, como este texto, no site Terra Magazine), tinha elogiado a posição do Governo Federal em proibir a venda de bebidas alcoólicas à beira das estradas, como continuo acreditando que é preciso ir além: penso que de deve proibir a venda desse tipo de bebida em supermercados, permitindo a venda apenas em locais específicos e autorizados em que só entrem maiores de idade; penso também que deve ser proibida toda publicidade de bebidas alcoólicas etc. O Estado deve mesmo fazer algo, mas sempre respeitando as garantias constitucionais de um verdadeiro Estado de Direito.

Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava – todos nós sonhávamos – um dia ver a democracia real instituída no Brasil.

A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a Constituição Federal de 1988, nossa esperança aumentou: afinal era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel.

Muito bem. O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. Como estudante de direito já há 33 anos ficou triste e até, diria, um pouco descorçoado.

É incrível como o Poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo.

As ações policiais, por exemplo, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades.

Veja o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra os cidadãos de bem. A pessoa é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque acabou de sair de um restaurante. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem.

Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento comercial ou nem isso: apenas porque está passando naquele local naquele momento. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É assombroso, para dizer o mínimo.

De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de trabalho?

Dou exemplo de quando é possível a abordagem: se a pessoa entra cambaleando num veículo para dirigi-lo, eis o dado objetivo. Nesse caso o policial é testemunha ocular e tem o dever de agir. Ou, se o veículo faz zigue-zague na rua, é preciso pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo.

Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente, não pode ser abordado e nem se lhe pode impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por exemplo, exigir o teste do bafômetro.

Eu digo isso, apenas e tão somente porque as leis não estão sendo cumpridas. Vamos a elas, então.

Em primeiro lugar, leia a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB): “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do que as autoridades policiais estão adotando. O Professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do referido dispositivo.

Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte da regra legal (“sob influência de qualquer outra substância…”) deve valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva “ou” remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.

Dou também outra razão: a própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que passou a ter a seguinte dicção: “Art. 4º-A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção.” (grifei)

Pergunto: o que significa “estar sob influência”? O professor Luiz Flávio Gomes responde: estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que vai além da existência do álcool no corpo.

No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a direção em zigue-zague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão de álcool sem significar perigo concreto ainda que indeterminado, geraria tipo penal de um crime abstrato, algo inadmitido no direito.

E, em reforço lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: “dirigir sob influência do álcool”. Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos) há que se constata influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão.

Pergunto agora: Pode a polícia parar o veículo e submeter toda e qualquer pessoa ao exame do bafômetro? A resposta é não e por vários motivos. Primeiro, porque para abordar qualquer cidadão é preciso lei que autorize ou dado objetivo que permita. O direito de locomover-se livremente é assegurado constitucionalmente (Art. 5º, XV, CF).

Segundo, porque ainda que o motorista tenha ingerido álcool, isso não basta, pois deve se poder constatar um fato objetivo que gere perigo concreto, real decorrente de sua influência.

Terceiro, porque ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo. Se em algum caso, puder se constatar a influência do álcool por elementos exteriorizados objetivamente, então, nesse caso, a prisão há de ser feita com base em testemunhas e não mera suspeita infundada do policial ou por ordem direta de seus superiores que criaram uma suspeita em abstrato e geral.

Porém, digo mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode se dar outro crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade (ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09 de dezembro de 1965). Dentre eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física do indivíduo (art. 3º, “a” e “i”).

É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão, como demonstram, as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro “Abuso de Autoridade” (Publicado pela Editora Revista do Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).

Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar a autoridade pelo crime de abuso.

No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação à quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordem superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor.

De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse com todas as letras que “sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade judiciária competente, seu descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus subordinados” (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas).

O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo assaltados por bandidos armados. Em comum a violência e o abandono.

Afora o fato de que esse tipo de blitz acaba deixando um rastro. Quando elas cessarem, porque cessarão, deixarão no ar a possibilidade da ilegal abordagem de quem quer que seja e, nesse momento, os policiais menos escrupulosos aproveitarão para “engordar o caixa”. Mais um procedimento que facilita a corrupção. Outra coisa para se lamentar.

Não posso, como professor de Direito, depois de quase trinta anos de magistério, ficar tranqüilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude direito, porque ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, o que assisto todo dia e cada vez mais é uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base.

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BREJAS, obviamente, não é a favor que se dirija bêbado. Afinal, somos o país das 35 mil mortes/ano no trânsito, metade das quais causadas pelo álcool associado à direção. Todavia, como o Professor Nunes, apenas questionamos a FORMA e o MÉTODO pelos quais a chamada “Lei Seca” foi redigida e será (ou não) aplicada. Fique à vontade para comentar.

3 Respostas para “Ainda sobre a “Lei Seca””


  • O circo está armado… resta saber até quando.

  • Vamo parar de beber…
    Bom os jovens não podem beber nem um cerveja mais, so que eles podem passar pelas blitz dps de ter fumando maconha. cherado um crack..

    É sera q tão plantando uma arvore agora, que no futuro dará que frutos?
    Seila…

  • O bafômetro apresenta um certo erro, segundo testes do INMETRO o ideal seria dar um desconto no mínimo de 0.1. Entretanto a lei é bem clara “ZERO”, o que é impraticável. Do modo como esta o simples fato de dirigir constitui contravenção. Não existe regulamentação alguma para essa “estoria” de 0.1, é tudo mentira do governo. Mesmo quem nunca bebeu na vida se parado corre o risco de ser multado, ter sua carteira cassada e o carro apreendido. É por esta razão que a imensa maioria dos paises que fazem uso do bafômetro, utilizam uma tolerância mínima mesmo que esta seja muito baixa. “ZERO” só nos paises árabes, onde nem se usa bafômetro, pois por questões religiosas é proibida a fabricação e comercialização de bebidas alcoólicas. As pessoas antes de manifestar suas opiniões muitas vezes de forma preconceituosa deviam se inteirar mais, buscar a verdade dos fatos e o impacto das medidas em suas vidas. Queremos poder voltar a dirigir sossegados sem correr o risco de sermos coagidos pela policia. Para que isto ocorra este limite deve constar no texto da lei. Ou vocês preferem seguir o conselho do ministro Leitão e contar com o bom senso dos policiais ?
    Peço a todos que entrem nos links abaixo e tirem suas próprias conclusões a este respeito
    1)Vejam o documento original da lei 11707 no site da casa civil, link abaixo:
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11705.htm
    2)Tabela com a concentração limite de álcool para diversos paises do mundo:
    http://www.icap.org/PolicyIssues/DrinkingandDriving/BACTable/tabid/199/Default.aspx
    3)Detran do Rio Grande do Sul sobre a inexistente regulamentação:
    http://www.detran.rs.gov.br/clipping_sites/julho2008/02.htm
    4)Segundo a OAB lei favorece os criminosos do trânsito:
    http://www.oab-ba.org.br/novo/Template.asp?nivel=000100020002&identidade=94&noticiaid=5330
    Quem fez a lei agiu de forma irresponsável arriscando todos os motoristas a punição mas deixando de fora os bandidos e assassinos do trânsito. Esta lei é em todos os sentidos inferior a outra. E então ainda parece tão justa? Solução para todos nós “não usar o carro senão ele será apreendido”.

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