Trigo e cerveja: Nobre combinação desde a Antiguidade – Parte 2

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por Gabriela Montandon e Paulo Patrus*; Veja a Parte 1

Com o passar dos séculos, um estilo específico de cerveja de trigo se infiltrou no sul da Alemanha (Bavária, séc. XVII) e, muito apreciado pela realeza, hoje se tornou o estilo mais popular de cerveja de trigo: Weizen Bier ou Weiss Bier. Acredita-se que o estilo surgiu na região da Boêmia (República Tcheca) e que posteriormente chegou à Bavária onde se fixou como estilo típico da região.

Estas cervejas eram também privilégio da realeza, visto que o trigo possuía um limite geográfico de cultivo menor do que a cevada. Em determinados períodos, a prioridade da utilização do trigo era para a fabricação de pães – consequentemente, aquele que tivesse a possibilidade consumir cerveja de trigo era um privilegiado. Portanto, a cerveja de trigo na Bavária era também considerada “iguaria” e por séculos foi proibida para as camadas mais baixas da sociedade.

Lei de Pureza

Antes da lei da pureza alemã Reinheitsgebot (proclamada pelo duque Wilhelm IV em 1516) as cervejas poderiam ser produzidas tanto com malte de cevada quanto com trigo. Após a proclamação desta lei, o uso do trigo na produção de cerveja ficou proibido – para o povo, ficava restringido apenas o uso de malte de cevada na fabricação de cerveja. A partir daquele momento, as cervejarias estariam proibidas de produzir cervejas de trigo.

Entretanto, esta proibição não se aplicava à produção das Weiss biers pelos nobres bávaros, principalmente à família dos Degenbergers. Como consequência, a cerveja de trigo se tornou oficialmente um privilégio da nobreza, essencialmente dos Degenbergers, que já produziam exclusivamente o estilo antes da lei de 1516.

Após o barão Hans Sigmund de Degenberg falecer sem deixar herdeiros, o direito de produção de cervejas de trigo passou para a família real bávara. Naquela época, na cidade de Munique, o duque e bisneto de Wilhelm IV, Maximilian I, construiu a cervejaria da corte, a famosa Hofbräuhaus (HB). Com os anos, o ducado aumentou seu conglomerado de cervejarias e garantiu sua exclusividade na produção das Weiss Biers. Com o aumento deste “império cervejeiro”, o consumo de cervejas de trigo se abriu à massa bávara. Resultado: em um novo decreto real, as tavernas puderam comercializar as Weiss biers, além das cervejas de cevada.

Popularidade

Como conseqüência, houve tanto um aumento nos cofres do ducado quanto na popularidade das cervejas de trigo na Bavária. Este direito exclusivo permaneceu com a família real até o século XIX, mas após um longo período de monopólio dos duques, a cervejaria Hofbräuhaus foi alugada pelo cervejeiro Georg Schneider, que adquiriu o direito de produzir Weiss Biers. Posteriormente, os Schneiders estabeleceram a própria cervejaria e com o tempo, detiveram grande parte das cervejarias reais e produtoras de cervejas de trigo. Após a Segunda Guerra Mundial, em 1949, a família concentrou seus esforços na consolidação da cervejaria Schneider na cidade de Kelheim – atualmente produtora de cervejas de trigo, entre elas a famosa Aventinus Weizen Doppelbock.

Atualmente as cervejas de trigo são conhecidas como “cervejas brancas”, devido a sua coloração de tons mais pastéis e pelo colarinho essencialmente branco e marcante. Dependendo do estilo, as cervejas poderão levar trigo malteado ou não. Como exemplos, a utilização de trigo não malteado nas cervejas belgas estilo Witbier, e uso do trigo malteado nas clássicas Weiss Bier.

Weissbier e Witbier

Hoje em dia dois países são muito conhecidos pela diversidade de cervejas de trigo: são eles a Bélgica e a Alemanha. As cervejas de trigo belgas também recebem a denominação de cerveja branca, literalmente Witbier ou Bière Blanche – respectivamente em neerlandês e francês.

O estilo Wit Bier surgiu no norte da Bélgica (região de Flandres), mais especificamente próximo à cidade de Hoegaarden. Levando o mesmo nome da cidade, atualmente a cerveja Hoegaarden é considerada como a originária do estilo Witbier. De aparência leitosa devido a sua coloração pálida e intensa turbidez, possui sabor e aroma cítricos, advindos principalmente da utilização de cascas de laranja (curaçao) e/ou sementes de coentro. Também apresenta aroma frutado e adocicado, com leves notas de mel e baunilha. São utilizados cerca de 50% de trigo não malteado, o que confere certa persistência no corpo, além do sabor mais intenso de grãos (grainy) e elevada turbidez.

Na Alemanha as típicas cervejas de trigo bávaras (Weissbier – “cerveja branca”) compreendem o estilo de cerveja de trigo ainda mais popular e consumido no mundo. As tradicionais Weizenbiers, cervejas de alta fermentação fabricadas com 40% a 60% de trigo malteado, caracterizam-se por tons pálidos, são levemente lupuladas (com pouco ou nenhum aroma de lúpulos aromáticos). Normalmente não são filtradas (Naturtrüb) e, devido à abundância de proteínas do trigo, a cerveja apresenta alto grau de turbidez e corpo marcante – sensações aumentadas pela presença de leveduras em suspensão (Hefe-Weizen) e pelo processo de refermentação na garrafa. Muito característico também é a presença do colarinho espesso, cremoso e branco, além dos aromas de cravo e banana, assim como aromas cítricos, de baunilha ou tipo ‘tutti- frutti’. Derivações deste estilo compreendem as Kristall Weizen, cervejas filtradas e sem refermentação na garrafa, as Dunkel Weizen e Weizen-Bock, onde respectivamente se faz o uso de maltes de cevada torrefados e do tipo Munich, que conferem coloração característica e aromas especiais a estes estilos.

Trigo e fermentação lática

Berliner Weisse é outro estilo de cerveja de trigo alemã, que se acredita ter surgido na cidade de Berlim no início do século XIX. Alguns registros históricos datados da época das invasões napoleônicas mostram que este estilo foi muito apreciado pelo exército de Napoleão durante a “Campanha do Norte”. Parece que a origem do estilo está relacionada com a migração dos refugiados protestantes franceses, conhecidos como huguenotes, para Berlim, onde as tradições cervejeiras da região de Flandres influenciaram o coração da Alemanha.

Uma cerveja de alta fermentação, de longa maturação, baixo teor alcoólico e elevada acidez, caracteriza o estilo Berliner Weisse.  A acidez peculiar deste estilo é originária do processo de fermentação de bactérias láticas. Para equilibrar esta acidez, comumente as cervejas são servidas com xaropes de framboesa ou de folhas de aspérula (conhecido como Waldmeister). De colarinho pouco persistente, em um contexto geral, esta cerveja tem caráter bastante refrescante. Freqüentemente o apreciador de uma Berliner Weisse pede pela “cerveja vermelha ou verde”, fazendo referência a cor do xarope adicionado a cerveja.

Cerveja com sal

Outro estilo de cerveja de trigo alemã que praticamente desapareceu após a queda do muro de Berlim e só atualmente está sendo resgatado por degustadores exigentes, é a Leipziger Gose. Este estilo de cerveja branca, originado na cidade saxã de Goslar, é extremamente peculiar pois além da certa acidez, possui sabor salgado – derivado da adição de sal durante o seu processo de fabricação. É produzida com maltes de cevada, trigo e aveia, levemente lupuladas e levam sementes de coentro, conferindo caráter cítrico ao estilo. Similar ao Berliner Weisse, as goses podem ser servidas com xaropes de framboesa, aspérula ou até mesmo com licores de curaçao, cereja e kümmel.

Originalmente privilégio de nobres, hoje em dia o requinte das cervejas de trigo pode ser mais facilmente apreciado. Antes regalia de belgas e alemães, e atualmente produzidas por vários países, estas cervejas invadem supermercados, bares, restaurantes e casas especializadas com distintos rótulos, nacionais e importados. Aliado a isso, harmonizações de cervejas com a culinária brasileira pela arte da alta cozinha valorizam e enobrecem ainda mais as cervejas de trigo.

De qualidades que se equiparam, devemos apreciar os diferentes rótulos, nacionais e importados, disponíveis no mercado e assim constatar que o trigo e a cerveja formam uma combinação muito mais que nobre!

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Patrus

*Gabriela MontandonPaulo Patrus são biólogos, cervejeiros caseiros e integrantes do grupo NEC – Núcleo de Estudos da Cerveja, sediado em Belo Horizonte (MG).

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