Uma obra de arte da lavra da Biertruppe. Uma cerveja que honra a tradicional complexidade das cervejas fortes inglesas, produzida aqui no interior de São Paulo, com uma intensidade, complexidade e harmonia capazes de botar muito lorde britânico para correr. A apresentação começa com o rótulo muito bem feito imitando um quadro negro, que transmite a sensação de um produto elaborado e acompanhado com carinho, esmero e capricho em todas as etapas e passos necessários para acumular suas prodigiosas virtudes. O líquido mostra uma cor marrom avermelhada, sisuda, mas que revela belos reflexos de cor rubi e alaranjada nas bordas. Despejada na taça, ela forma uma espuma delicada, breve e fugaz, quase onírica, que logo deixa uma fina espiral de névoa sobre o líquido. Sente-se confortavelmente, relaxe e aprecie-a como quem conversa com um velho amigo ao pé do fogo. Sua complexidade é arrebatadora, e sua evolução na taça é acentuada, como se ela nos contasse uma longa história cheia de idas e vindas. O conjunto é orquestrado por uma combinação ao mesmo tempo lânguida, densa e rústica de caramelo, algo lembrando couro molhado e um amadeirado levemente tostado e vinificado dos barris de vinho e brandy pelos quais passou em seu caminho até o copo. Mas, como ocorre com todo bom prosador, sua história tem nuances de lugares outros: as leveduras conferem-lhe presença marcante de frutas passas (ameixas, uvas passas e até algo de tâmaras secas), um toque picante de fenóis lembrando pimenta do reino, um quê de vinho do porto, talvez um toque de maçãs vermelhas. Com o tempo, o picante vai ficando mais evidente, e vão surgindo também notas marcantes de mel ou xarope e uma presença frutada mais doce, remetendo a goiabada. Poderia parece que tanto peso tornaria essa história cansativa, mas o lúpulo aromático aparece com um certo frescor de segundo plano, lembrando tangerina ou marmelada inglesa de laranja, como uma melodia de fundo que vai se insinuando quase despercebida sob um tema musical dominante. Sua história termina com um final mais tostado e seco, remetendo a madeira queimada e carvão, mas de uma forma gentil, sem desconforto. O que é mais impressionante é a forma como esses elementos interagem de uma maneira harmônica, sem que um deles se sobrepuje aos demais ou apareça de forma excessiva, como aqueles repentistas ou jazzistas capazes de desenvolver um mesmo tema de formas sempre diferentes e surpreendentes.
Seu paladar é intenso e tem um equilíbrio exato entre a doçura licorosa e o amargor, com toques salgados consideráveis e uma baixa acidez. A evolução é consistente: a entrada é impactante, fortemente doce e licorosa (mas com uma certa rusticidade salgada), com um doce-amargo de fundo e um final que começa adocicado e licoroso com notas de ameixas secas, caramelo e xarope, mas um segundo depois se transmuta em algo mais amargo, seco e torrado, com os sabores de madeira queimada e carvão. Ao final, sobra um residual longuíssimo, como uma lembrança vívida, de tangerina. Ela é encorpada e tem uma textura licorosa acentuada pela baixa carbonatação. Apesar de ser uma cerveja potente, apresenta uma drinkability razoável devido a seu equilíbrio e à sensação alcoólica acolhedora e suave. Uma cerveja absolutamente extraordinária, e extraordinariamente exata e rigorosa, que não escorrega em seus próprios excessos e, por isso, proporciona uma experiência ao mesmo tempo memorável e harmônica. O peso dos maltes é muito bem contrabalanceado e complementado pelos toques de rusticidade da maturação lembrando couro (que quebram o doce mas reforçam a densidade do malte), pelo amadeirado vinificado e tostado do descanso em barricas de carvalho e pelo sutil frescor de fundo do lúpulo. Diferentemente de outras cervejas nacionais que apresentam a mesma denominação, esta segue o estilo rigorosamente; mas é daquelas cervejas que executam de forma tão virtuosa seu estilo que o transcendem. Difícil encontrar qualquer defeito nela. Para mim, ela é como uma história longa de viajante, séria, pesada, com mortes e traições, com lugares ermos, mas também com seus momentos de alegria e até de sentimento e lirismo. Aliás, uma deliciosa história que eu ouviria ser contada inúmeras vezes, sem me cansar devido à forma como suas peripécias são costuradas a seus temas centrais de mil maneiras diferentes a cada gole. Meus comovidos parabéns à Biertruppe e à Bamberg por esta obra-prima. Mal posso aguardar a próximas safras: queremos ouvir de novo essa história na versão nº2, nº3, ad eternum.