A Nova Escola Americana, segundo os americanos

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unclesambeer

Artigo exclusivo para o BREJAS, por James Thompson*

Na minha última viagem para Chicago, chamei Ray Daniels, diretor do Cicerone Certification Program e membro sênior da Siebel Institute of Technology. A Siebel é a escola mais antiga de cervejaria nos Estados Unidos, e Ray é professor de ciência da produção da cerveja. A última vez que eu o vi foi num dezembro escaldante no Estado do Rio de Janeiro, quando fomos para a Cervejaria Mistura Clássica, em Volta Redonda, e gastamos uma tarde toda degustando cervejas com o anfitrião e dono da cervejaria, Severino Batista.

Naquele dia, o tempo estava frio e ventava muito na beira do gélido Lago Michigan, quando Ray abriu a porta do passageiro de seu carro e disse “entra aí, James!”. Rodamos as ruas secudárias da cidade, abaixo das trilhas elevadas do famoso metrô de Chicago (O El,) e para um brewpub que se situava entre armazéns antigos, da época industrial. Enquanto conversávamos, o garçom perguntou sobre o livro de Ray, Designing Great Beers, do qual já foram vendidos 40 mil exemplares. Um freguês aproximou-se da nossa mesa para perguntar o que Ray achou de uma determinada cerveja feita com um ingrediente que eu jamais imaginaria mencionado na mesma frase com a palavra cerveja.

E isto me levou a perguntá-lo sobre a chamada Escola Americana, sobre a qual todo mundo fala. Trata-se de um movimento verdadeiro ou é meramente uma onda passageira com um nome maneiro?

“Claro que é legítimo,” disse. “Temos desenvolvido um conjunto inteiro de estilos de cerveja que é verdadeiramente próprio aos EUA. Enquanto quase todos são baseados — ou se inspiram em — cervejas clássicas européias. Elas têm sido alteradas e, em alguns casos, totalmente refeitas. O resultado é um conjunto inteiro de cervejas — principalmente ales — com sabores únicos.

Eu pensei nas cervejas criativas do Brasil, as quais tinha ouvido falar, feitas com rapadura, mate — e uma das favoritas naquele dia na Mistura Clássica — café. Três dos ingredientes mais brasileiros que eu poderia imaginar.

Então, é aceitável quebrar as famosas leis da pureza europeias propositadamente?, eu perguntei.

“Claro que se pode quebrá-las!” disse, levantando a tulipa. “Não existe uma lei de pureza europeia, de longa data. Os alemães — na verdade, os bávaros – têm a Reinheitsgebot, que tem subsistido por séculos. Mas o resto da Europa não

Ray Daniels

Ray Daniels

 tem tal tradição. E os europeus fazem cervejas de maneira bem diferente na Inglaterra, na Bélgica ou Alemanha. Então, a chamada Escola Americana não fica longe, na verdade, das tradições gerais na produção de cerveja que têm sido praticadas na Europa, pelo menos em termos da mentalidade geral sobre a produção de uma cerveja excelente que é apta a seus ingredientes e amada por seus fregueses.”

Os estilos belgas

Eu enchi meu copo com mais IPA do estilo belga, o que Ray havia sugerido. Ele havia me dito que as IPAs belgas eram a nova onda nos Estados Unidos, este ano — a mais nova das novas tendências que surgem a cada ano ou dois. Estas IPAs belgas, disse, são feitas com lupulagem ao nível norte-americano, mas fermentadas com um “fermento forte belga, e talvez até com brettanomyces.”

Você poderia dizer que isto é meramente uma variação duma IPA norte-americana, ou um jeito especial que resulta numa cerveja com sabor único. Um exemplo perfeito, Ray diria, da continuidade da tradição norte-americana, entre os cervejeiros artesanais, de investigar e criar sabores novos.

“Realmente, a tendência geral dos estilos belgas, disse Ray, está no seu quinto ou sexto ano. A Bélgica pode ser um país pequeno, mas os belgas fazem um monte de cervejas únicas, e eles têm muitas técnicas próprias somente deles. Vários cervejeiros norte-americanos adoram a natureza idiossincrática da cervejaria belga, e eles estudam-na minuciosamente.”

Isto tem levado, disse Ray, a vários novos tipos de cerveja sendo comuns nos EUA — coisas como cervejas maturadas na madeira, ou no barril; cervejas fermentadas com brettanomyces, cervejas ácidas, e até umas resurgentes cervejas de frutas, que são bem diferentes das cervejas exageradas e doces feitas no inicio da década de 90.

O lúpulo

Ray pediu outra cerveja para ele, e eu deixei que ele escolhesse uma para mim. Com tantas informações na cabeça dele eu seria tolo de não aproveitar do seu conhecimento. Eu havia feito a mesma coisa em São Paulo e no Rio durante sua visita ao Brasil. Eu não seria aquele a desperdiçar boas fontes — nem uma boa cerveja!

Nem perderia a oportunidade de falar sobre o lúpulo norte-americano. E Ray conversou sobre o lúpulo como se ele já soubesse que o assunto surgiria na conversa.

“O lúpulo norte-americano é uma grande parte da razão porque nós temos os estilos norte-americanos. Os primeiros cervejeiros artesanais aprenderam como produzir cerveja a partir da literatura inglesa sobre o assunto. Estas foram as únicas informações facilmente acessíveis sobre como fazer cerveja, há uns 30 ou 40 anos atrás. Mas, quando eles foram produzir, vamos dizer, um English Bitter, descobriram que não conseguiam obter os lúpulos Fuggle ou Golding, que as receitas haviam pedido — ou, se achavam o lúpulo, ele custava muito caro. Então, eles começaram a produzir cervejas com as variedades norte-americanas, e descobriram sabores que eles gostavam. E, claro, os consumidores, nesta época, foram um quadro em branco — os cervejeiros estavam, literalmente, apresentando cervejas saborosas aos consumidores e ensinando-os qual o sabor potencial de uma cerveja.”

Um programa bem ativo, de melhoramento genético, do lúpulo, ambos nas universidades e na indústria, também tem contruibuído à elevação e ao sucesso do setor da cerveja artesanal nos EUA. As variedades clássicas norte-americanas de aroma, Cascade e Willamette, foram introduzidas nos 70, e se tornaram lúpulos básicos entre os cervejeiros artesanais. Nos anos recentes, uma mistura até mais diversificada de variedades públicas e privadas tem sido introduzida nos EUA. Exemplos incluem Mt. Hood, Centennial, Sterling, Palisade e Citra.

Brasil

Como a hora de ir embora se aproximava, eu perguntei a Ray sobre a visita dele às cervejarias brasileiras em dezembro de 2008. Eu quis saber o que ele achou da escola brasileira.

“Algumas pessoas diriam que a produção cervejeira brasileira está onde os Estados Unidos estavam 20 ou 30 anos atrás,” disse. “Mas eu tenho visto os movimentos da cervejaria artesanal em várias partes do mundo, e cada um fica um pouco diferente. Eles são altamente influenciados pelas leis que governam as cervejas e a produção da cerveja. Os produtos e os métodos da comercialização dos cervejeiros existentes têm um papel bem grande E, finalmente, você tem o aspecto dos consumidores: As pessoas estão desejando coisa nova e abertas aos sabores e experiências de novos sabores de cerveja? Então, o Brasil vai encontrar seu próprio caminho — um caminho que se encaixa nas condições do Brasil. Fica claro, porém, que há cervejas muito interessantes que estão sendo produzidas no Brasil. Espero que elas acham seu nicho, e que crescam.

Chegara a hora de terminar a conversa e pagar a conta. E, saíndo do brewpub, o vento nos cortou com um pouquinho mais de força do que aquelas brisas do Rio de Janeiro, quando saímos da Mistura Clássica, meses atrás. Mas as brisas da inovação das cervejas nas Américas — do Norte e do Sul — essas brisas estão, sim, soprando.

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JamesThompson 

 

* James Thompson é o representante no Brasil da USA Hops. Seus artigos têm sido publicados nas revistas Latin Trade, The Saint Louis Post-Dispatch, Soybean DigestABEF. Thompson escreve regularmente também para o BREJAS, com artigos exclusivos.

5 Respostas para “A Nova Escola Americana, segundo os americanos”


  • Fantástico artigo!
    Uma quebra de mitos, seguido por uma história bem contada e regada por cervejas de primeira qualidade.

    James esta de parabéns pelas palavras e o Brejas, no mesmo nível, por publicá-las.

    Abraços!

  • REalmente uma otima reportagem, uma nova escola norte americana, um crecimento IMPAR da cultura cervejrian no Brasil, e duas figuras ilustres contando esse historia em uma mesa de bar. Dava um filme isso ai heim =]=]=]

  • 3 Mauricio (BREJAS)

    Fecho com a opinião do Ray Daniels, embora muitos especialistas em cervejas aqui do Brasil possam discordar.
    Eu também era cético em relação às cervejas americanas formarem uma escola, e cético mesmo para com as próprias brejas americanas. Depois de estar nos Estados Unidos estudando — e degustando — as artesanais daquele país, voltei com os meus parâmetros mudados.
    Isso porque ali se segue uma tendência histórica natural das escolas cervejeiras tradicionais, que também sempre “emprestaram” elementos e insumos de suas co-irmãs para se reinventarem.
    Os cervejeiros americanos fazem exatamente isso e, como disse Daniels, em alguns casos, os estilos já estabelecidos são totalmente refeitos. Isso faz com que os EUA estejam, de fato, criando um estilo totalmente novo em cervejas.
    Além disso, têm desenvolvido, através da tecnologia que lhes sobra, insumos totalmente novos, como os descritos na matéria.
    Diante disso, não consigo imaginar as cervejas artesanais americanas senão como fazendo parte de uma ESCOLA totalmente nova de cervejaria, com inspiração — mas destacada — das tradicionais europeias.

  • 4 Mauro Renzi Ferreira

    Se trata de uma nova cultura cervejeira, criada de acordo e pelas necessidades e condições existentes nos EUA.
    Assim, eles perceberam que não poderiam recriar fielmente as receitas do “Velho Mundo” e, neste caso, seriam obrigados a criar seu próprio jeito, com seus próprios ingredientes, de fazer cerveja.
    O que eles talvez não sabiam era que, a partir disso, estariam criando, ainda que “sem querer” cervejas de qualidade tão alta e uma nova escola cervejeira.

  • Pois eh MAuro
    AS vezes as melhores coisas acontecem por acaso e nesse caso pela necessidade de se usar ingredientes regionais e mais facilmente encontrados, e assim acbou crinado naturalmente uma noca cultura.

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